Edição #4
A pandemia potencializou as discussões sobre saúde mental, com bastante destaque no meio acadêmico e social. O cenário de instabilidade generalizada e a necessidade urgente de adaptação do modelo de vida e produção deixa evidente o tempo todo que precisamos nos readequar às nossas atividades. Na vida profissional, por exemplo, o formato remoto tornou os limites entre trabalho, estudo e lazer muito menos concretos e trouxe consigo consequências visíveis para a qualidade de vida dos trabalhadores. Acompanhe a leitura para saber mais.
Panorama geral
A carga dissolvida entre se isolar, trabalhar em situações inadequadas, encarar uma crise e acompanhar os noticiários nada animadores vêm afetando a todas as pessoas. No mundo corporativo, o reflexo desse contexto também é preocupante. Uma pesquisa da Workana feita com pessoas que estão trabalhando mostra que 43,7% do público sentiu algum sintoma de prejuízo mental durante a pandemia. Entre estas, 24% sentiu dificuldade de se concentrar, 13,2% sentiu ansiedade, 5,8% sentiram solidão e 0,8% sentiram depressão ou claustrofobia.
Esse cenário já é bastante preocupante, mas não é o único. Quando olhamos para além do recorte remoto e consideramos as pessoas que precisam manter as suas atividades presenciais, a situação se agrava ainda mais. Afinal, como manter a saúde mental quando nem mesmo a chance de preservar a saúde física é assegurada? Pessoas entregadoras, profissionais da saúde, pessoas que trabalham em serviços essenciais ou aquelas que simplesmente não têm escolha; Todas são impactadas duplamente por essas pressões e ansiedades.
Vale considerar ainda como o sistema de consumo e produção no qual vivemos impacta negativamente essa dinâmica. Falar sobre saúde mental, dentro da sociedade capitalista, é também falar sobre privilégios de classe, uma vez que o acesso à saúde em geral ainda é tida como um privilégio, embora seja um direito essencial à vida.
43%
das pessoas que trabalham sentiram algum sintoma de prejuízo mental durante a pandemia.
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47%
das pessoas que trabalham sinalizaram sofrer de ansiedade e depressão. Com o isolamento social esses sintomas intensificaram.
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20
mil pessoas pediram afastamento médico por doenças mentais relacionadas ao trabalho em 2019.
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O processo de afrouxamento das leis trabalhistas reafirma essa percepção individualista. Com isso, as pessoas que detêm poder aquisitivo - e nem precisa ser muito - pensam ser capazes de resolver todas as demandas por si só. No livro Sociedade do Cansaço, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han afirma que:
“A sociedade disciplinar de Foucault, feita de hospitais, asilos, presídios, quartéis e fábricas, não é mais a sociedade de hoje. Em seu lugar, há muito tempo, entrou uma outra sociedade, a saber, uma sociedade de academias de fitness, prédios de escritórios, bancos, aeroportos, shopping centers e laboratórios de genética. A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais “sujeitos da obediência”, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de si mesmos.” (p. 15). Editora Vozes. Edição do Kindle.
Em consequência dessa absorção do dever, da hiperprodutividade, e do excesso de positividade, de todas as demandas do mercado em geral, as pessoas acabam por criar suas próprias armadilhas. Han expressa isso descrevendo que cada pessoa carrega consigo seu campo de trabalho. A especificidade desse campo de trabalho é que somos ao mesmo tempo a pessoa prisioneira, a vigia, a vítima e a agressora. Uma exploração possível mesmo sem senhorio. O autor afirma ainda que uma vez que esta lógica está implementada, a da pessoa que tudo pode, o inverso equivalente também é possível. Em outras palavras, Han defende que a lamúria da pessoa depressiva de que nada é possível só se torna possível numa sociedade que crê que nada é impossível.
Porém, este sistema precisa ampliar a sua rede de atendimento, para que mais pessoas acessem tratamentos adequados. E isso se tornou praticamente inviável nesses últimos anos, depois que governos neoliberais limitaram os investimentos obrigatórios do Estado (através de uma Proposta de Emenda Constitucional conhecida como PEC do teto dos gastos), que afeta diretamente o orçamento da Saúde.
A partir deste contexto, ao pensar em acesso à saúde mental, precisamos, em primeiro lugar, debater:
- Para quem é este acesso? Quais as condições materiais para que as pessoas tenham acesso à saúde mental?
- Como o SUS pode auxiliar no atendimento dessas pessoas?
- Qual o papel do terceiro setor nesses atendimentos?
- Como garantir o acesso à saúde mental dentro desse contexto de vulnerabilidade social?
- Como garantir uma estabilidade das condições clínicas das pessoas que enfrentam problemas relacionados à saúde mental em um contexto social de desemprego, fome, e todo o tipo de pressão financeira?
A partir desta perspectiva, mesmo as pessoas que enfrentam transtornos mentais, também ficam sujeitas ao puro e simples desejo de alterar a sua condição para uma possível “normalidade”. Pois é muito comum ouvir frases como: “você está fazendo o que para mudar a sua vida?”, ou “Todo mundo tem problemas de saúde mental e OK. Viva com isso. Ou supere você mesmo”. Essas falas também derivam do princípio fundamental da individualização das atitudes.
Aqui não falamos das possíveis fontes de sofrimento nas pessoas com transtornos mentais. Mas sim do fato de que essas pessoas não conseguem se adaptar a toda pressão externa. Logo, além do transtorno, mais uma culpa é gerada para a pessoa, por não encontrar a própria “cura”.
Nas redes sociais pipocam mensagens como “cuide da sua saúde mental”, “faça terapia”, etc. Essas frases podem soar como cuidado com as pessoas, mas evidenciam o quanto ainda compreendemos que o cuidado com a saúde mental é uma responsabilidade individual das pessoas “desajustadas”. E na realidade, o acesso à saúde mental ainda tem barreiras que derivam da oportunidade de consumo, não somente para o custeio do tratamento, mas, principalmente, porque condições básicas da dignidade de muitas pessoas ainda não foram supridas, como acesso ao saneamento básico, acesso à alimentação de qualidade, etc.
As pesquisadoras Renata Fabiana Pegoraro, doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos, e Regina Helena Lima Caldana, doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo, realizaram um estudo chamado Mulheres, Loucura e Cuidado: a condição da mulher na provisão e demanda por cuidados em saúde mental. Dentre muitos pontos relevantes, o estudo mostra algumas características de pessoas cuidadoras informais, mostrando que, no geral, são familiares que exercem cuidados classificados como não-técnicos e de forma não remunerada.
“Normalmente, são as mulheres do núcleo familiar, mães, irmãs e avós, que cuidam ou se responsabilizam por pessoas usuárias de serviços psiquiátricos extra-hospitalares. O tema de prestação de cuidados informais vem sendo cada dia mais estudado em nosso país. No entanto, a mulher não se encontra apenas na condição de prestadora de cuidados. Em muitos momentos, também demanda cuidados, sejam eles formais (exercidos por profissionais de saúde mental) ou informais, dentro do âmbito familiar” (p. 83, base Scielo)
Lucas Ludgero, em seu livro-reportagem chamado Sob a Pele, traz o posicionamento de profissionais de saúde mental que pesquisam a relação racismo x saúde mental. Ele aborda o processo de saúde mental pautado numa concepção ampliada de saúde, pois isso tem total relação com o contexto econômico, social e cultural do país. As estatísticas mostram a grande diferença de acesso a bens e serviços entre pessoas negras e brancas.
Ou seja, não é questão de ter a oferta e sim de impedimento financeiro para acessar. E há uma produção de ferramentas por parte do Estado para que este acesso não aconteça, como o encarceramento em massa, por exemplo. Dentre outras estruturas que impossibilitam o acesso das pessoas negras a diversos direitos, inclusive o de saúde.
O estresse e a Síndrome de Burnout também figuram nessas discussões. Essa síndrome tem um conjunto de sintomas que podemos resumir em um sentimento de esgotamento, e cada vez mais casos são registrados nos ambientes de trabalho.
Uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz analisou o impacto da pandemia e do isolamento social na saúde mental das pessoas que prestam serviços essenciais. O estudo mostrou que sintomas de ansiedade e depressão afetam 47,3% dessas pessoas nesse contexto, no Brasil e na Espanha. Além disso, mais da metade dessas pessoas (sendo 27,4% do total de entrevistadas) sofre de ansiedade e depressão ao mesmo tempo. Por fim, 44,3% dessas pessoas têm abusado de bebidas alcoólicas; 42,9% sofreram mudanças nos hábitos de sono; e 30,9% foram diagnosticadas ou trataram doenças mentais no ano anterior.
As pessoas envolvidas na pesquisa identificaram quatro causas para a chamada 'fadiga do zoom':
1) Quantidades excessivas de contato visual de perto são altamente intensas.
2) Ver a si durante chats de vídeo constantemente em tempo real é muito cansativo.
3) Os chats de vídeo reduzem drasticamente nossa mobilidade usual.
4) A carga cognitiva é muito maior em chats de vídeo.
Esse é um momento para refletirmos sobre a obsessão criada pela felicidade e calibrar as expectativas sobre o que é estar bem e ser bem sucedido, já que mesmo antes da pandemia, sofríamos diretamente com as falsas narrativas construídas por essa busca constante.
Precisamos falar sobre
O 'Precisamos falar sobre' é uma das formas que encontramos para gerar a conscientização e exploração de causas aqui na Meiuca. Mensalmente debatemos uma temática escolhida pelo nosso time, tentamos nos aprofundar nesse assunto durante este período e no final abrimos uma grande roda de conversa para estimular a reflexão coletiva. Convidamos pessoas especialistas nessa causa e pessoas entusiastas pelo tema para contribuir também!